Cientistas transformam cimento em material que mistura propriedades do vidro e do metal
Há quem acredite que o alquimista Nicolau Flamel desenvolveu e guardou para si a habilidade de transmutar metais em ouro. A história, datada do século 14, não deixou provas e ganhou ares de lenda. Quase 700 anos depois, cientistas do Japão, da Finlândia, da Alemanha e dos Estados Unidos apresentam uma técnica de transformação de materiais que também tem jeito de mito, mas é muito real. O grupo de pesquisadores conseguiu transformar cimento em um material que mistura propriedades de metal e vidro. E, em vez de um livro misterioso ou da pedra filosofal, os “pesquisadores-alquimistas” do século 21 contaram com um poderoso laser.
A proposta de usar a ciência para realizar o que parece um truque de mágica surgiu no Japão, no Instituto de Pesquisa de Radiação Síncrotron, também conhecido como SPring-8. O lugar é sede de grandes experimentos que submetem materiais a condições extremas, resultando no desenvolvimento de medicamentos, informações sobre o planeta e, claro, em formas inéditas de materiais.
A equipe usou como referência um trabalho publicado há dois anos, pelo pesquisador Hideo Hosono, do Instituto de Tecnologia de Tóquio. Em 2011, o japonês divulgou na revista Science a estrutura de um tipo de vidro fabricado em laboratório que logo deu origem a diversas patentes de fabricação – de eletrodos a telas planas. Mas pouco se sabia sobre o fenômeno que havia resultado no material. “Nossa contribuição é desvendar o mecanismo microscópico da transformação desses materiais de cimento em vidro metálico.
A possibilidade de refinar estruturas eletrônicas de vidros vai abrir uma porta para o desenvolvimento de novos materiais”, explica Shinji Kohara, pesquisador o SPring-8 e principal autor do novo trabalho, que descreveu a fabricação do vidro metálico na revista especializada Proceeding of the National Academy of Sciences (Pnas).
O laboratório japonês iniciou uma parceria com pesquisadores de todo o mundo para desenvolver uma técnica que permitisse a observação da transformação do material e a análise dos resultados a nível atômico, por meio de um supercomputador. Para isso, eles usaram um composto chamado aluminato de cálcio, presente no cimento comum.
O material foi bombardeado com lasers de dióxido de carbono a mais de 2.000 0C, sob diferentes pressões.
Durante o procedimento, o material foi mantido suspenso com um levitador aerodinâmico, que garantiu que a matéria não formasse cristais em contato com a superfície. O jato de gás sustentou o metal de forma similar à que um secador de cabelo pode fazer com uma bola de isopor. A matéria em transformação se cristalizou no ar na forma de um material híbrido, com a estrutura moldável do vidro e as propriedades condutivas do metal.
Para criar o metal amorfo, os pesquisadores recorreram a um processo chamado captura de elétrons. As partículas, que são “roubadas” do titânio usado durante a transformação, ficam aprisionadas em estruturas formadas pelo vidro, criando um caminho condutor semelhante ao que acontece em metais. “É como se houvesse inúmeras caixinhas com elétrons. E quando há uma diferença de potencial, esses elétrons são liberados, e (o material) passa a ser condutor. Se os elétrons vão de caixinha em caixinha, você tem a condutividade que não tinha no cimento”, ilustra Elson Longo da Silva, professor de engenharia de materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Até então, o processo só havia sido observado em soluções de amônia. Mas agora a técnica pode ser mais bem compreendida e adaptada para uso em outros tipos de materiais sólidos. “Isso abre toda uma área para o desenvolvimento de novos materiais”, enfatiza Chris Benmore, físico da Divisão de Ciência de Raios X do Argonne National Laboratory, em Illinois. “Podemos tentar reproduzir isso em outros materiais e talvez até realçar isso no design de novos tipos de materiais, que têm propriedades muito estranhas”, anima-se o pesquisador.
Um pouco de cada
As propriedades e a técnica de fabricação são tão incomuns que até mesmo os pesquisadores envolvidos na criação do vidro metálico têm dificuldade para compará-lo com materiais já presentes no cotidiano. “Ela muda para uma cor diferente. É vidro, na verdade. Então, é basicamente um líquido temperado para formar vidro sólido, não muito diferente do que você usaria para beber, mas na verdade ele é preto, e tem propriedades muito diferentes depois que atinge esse estado do que normalmente teria em uma loja comum”, tenta descrever Benmore.
O metal híbrido tem também uma resistência à corrosão maior que o material tradicional, é menos quebradiço que o vidro comum e acumula vantagens como a baixa perda de energia em campos magnéticos e a boa fluidez no processo de moldagem. “O cimento é refratário. Isso significa que ele não conduz energia térmica nem eletricidade. Eles partiram de um sujeito com uma propriedade e o transformaram, num giro de 180 graus. Isso abre novas perspectivas científicas. O pessoal descobriu algo extremamente interessante”, enfatiza Elson Silva, da UFSCar.
Os pesquisadores ressaltam ainda vantagens do novo material: a matéria-prima é abundante e de baixo custo, e a versatilidade da invenção pode levá-la a diferentes aplicações, que só dependem da popularização da técnica usada – ainda cara e pouco compreendida. O material criado em laboratório pode ser usado na fabricação de chips, células de combustível, filmes protetores e até mesmo como componente de telas de cristal líquido, como as usadas em dispositivos móveis e em computadores.
Veiculação Colaborativa agenciada OverBR por Roberta Machado