Há poucos dias tive a oportunidade de participar na Havana, capital de Cuba, do evento FELTI 2014 – Fórum de Empresários e Líderes de TI da América Latina, que contou com a participação de metade das empresas de TI de Cuba e uma amostra de empresas de toda Iberoamérica.
Um dos objetivos do evento é permitir que Cuba possa superar sua relativa situação de ‘desconexão’ com o resto do mundo: desde a imposição do embargo dos Estados Unidos logo no início dos anos 60, até o desaparecimento da União Soviética ao redor de 1990, o impacto da Guerra Fria se faz sentir por lá de uma forma que não guarda paralelo em outras partes do mundo (mesmo comparando com outros países que estiveram debaixo da “Cortina de Ferro”, como foi o caso de muitos da Europa Oriental). Por isso, tomo a liberdade de extrapolar (sem esquecer) o tema habitual, ligado à TI, para descrever mais detalhadamente um pouco do que observei por lá.
Logo na chegada ao aeroporto internacional de La Habana, ao passar pelas cabines de controle de passaportes, a tela piscava em verde com os dizeres “persona no controlada”. É possível desconfiar que uma outra cor é exibida na tela para pessoas que estejam na categoria ‘controlada’. Uma vez dentro do país, antes de dispor de moeda local, é preciso usar o cartão de crédito para efetuar qualquer compra. Embora este instrumento ‘capitalista’ possa ser usado na maioria dos estabelecimentos comerciais em Cuba, cartões emitidos ou controlados por bancos dos Estados Unidos não são aceitos.
As casas de câmbio são todas de uma mesma empresa (Cadeca S.A. – abreviatura de Casa De Cambio), de propriedade do Estado. É possível trocar qualquer moeda ‘forte’ (euros, libras esterlinas, francos suíços e dólares), porém a compra de dólares estadunidenses é sujeita a um imposto adicional de 10% sobre o valor. Daí a recomendação das agências de turismo em levar euros para quem vai a Cuba a turismo. Em tempo: o nosso real não é aceito por lá (embora já o seja nas casas de cambio nos demais países do MERCOSUL, na Espanha, em Portugal, entre outros).
A frota de carros fabricados nos Estados Unidos na década de 50 (antes do embargo, portanto), e que ainda circula pelas ruas de Cuba, é uma das imagens mais conhecidas mundo afora. Porém, nos dias atuais, estas relíquias automobilísticas convivem com várias ondas de carros importados: alguns Lada russos dos anos 80, carros pequenos de fabricação europeia, e os mais modernos e luxuosos carros de fabricação chinesa. Ao mesmo tempo, andando pela cidade, é possível observar diversos veículos ‘sui generis’, como bicicletas e motos adaptadas para servirem como taxis para levar até dois passageiros.
É importante destacar a quase ‘onipresência’ chinesa, desde o prédio do aeroporto e seus ônibus de transferência, passando pelos carros, e chegando até a programação da televisão: a presença maciça de programas da China TV, com programação em mandarim, espanhol e inglês, além de canais com conteúdo gerado na Venezuela. Apesar disso, também é possível assistir canais de televisão ocidentais como a BBC inglesa, a alemã DW e a TVE espanhola, além dos canais da Disney e o Cartoon Network.
Enquanto no Brasil reclamamos da pouca cobertura da rede 4G, em Havana, capital do país, há apenas sinal de dados baseado em tecnologia 2G, fornecido por uma única operadora de telecomunicações, a Cubacel, propriedade do estado cubano. O governo afirma que não dispõe de recursos suficientes para bancar o investimento necessário para estabelecer a tecnologia 3G. Ao mesmo tempo, a diária pelo roaming da operadora brasileira para dados 2G em Cuba custa o triplo do que é cobrado na Europa ou em qualquer outro país da América Latina. A conexão de um dos hotéis mais tradicionais, classificado como cinco estrelas, é a máxima disponível em Cuba: cinco megabits, e custa 20% do valor da hospedagem.
A ampliação da velocidade de acesso, fundamental para integrar o país no mundo da computação em nuvem, além de demandar investimentos em novas conexões (a principal interconexão da Internet de Cuba com o resto do mundo atualmente passa por um cabo submarino que a conecta com a Venezuela), exporia o país, de acordo com as autoridades, à parte “ruim” da rede. A posição oficial do governo cubano é que, enquanto eles não se sentirem capacitados para combater os efeitos ‘nefastos’ da rede, é impensável abrir o setor de telecomunicações ao investimento de companhias estrangeiras. Ao mesmo tempo, Cuba é o único que possui uma Universidade inteira dedicada às Ciências Informáticas. Conhecida como UCI, seu campus possui mais de quatro mil alunos, e quase mil professores, com um modelo de ensino que segue o modelo das escolas de medicina: a partir do terceiro ano dos cursos superiores, os alunos são envolvidos em atividades práticas e concretas, no caso, projetos de desenvolvimento de software e algum hardware, para atender, em primeiro lugar, as demandas do próprio governo cubano.
O governo de Cuba, entretanto, sabe que, para sair desta situação, é necessário fazer transformações na economia. O primeiro passo já foi dado há alguns anos, com a criação do peso cubano conversível (conhecido pela sigla CUC), que possui lastro efetivo nas reservas do banco central cubano em divisas estrangeiras. Seu valor equivale a cerca de um dólar, e seu uso é cada vez mais comum na economia cubana. Já quase não existem estabelecimentos comerciais que aceitam a chamada “moeda nacional” (o peso cubano tradicional, dos quais são necessários 24 para comprar um CUC). A população já está sendo preparada para o fim do regime de duas moedas.
Esse processo de abertura econômica redundará no crescimento das relações comerciais de Cuba com muitos outros países (um dos objetivos do FELTI 2014), colocando gradativamente na rota do capitalismo um país que ainda não admite isso: prédios públicos, escolas, destacamentos policiais, quartéis militares e hospitais continuam exibindo loas à ‘revolução’. Ainda na seara econômica, é importante observar que todas as empresas formais ainda são de propriedade do estado cubano. A iniciativa privada é permitida apenas para que as pessoas atuem como profissionais autônomos, como motoristas de taxi, guias de turismo, entre outras profissões.
Outro aspecto que preocupa o planejamento da economia é a questão demográfica: como consequência do bom nível do serviço de saúde pública e da educação, a expectativa de vida da população é elevada, e o índice de natalidade muito reduzido. A população cubana está envelhecendo antes de a economia ter passado por um processo significativo de crescimento.
Um último fator é a liberação da emigração, que ocorreu há poucos anos. Qualquer cidadão cubano pode hoje optar por emigrar. Como resultado, muitos dos recursos humanos que Cuba forma, e não apenas os médicos, acabam em outros países. No caso dos profissionais de tecnologia, recém-formados e os mais experientes emigram em volume tão significativo, que o governo já está avaliando a possibilidade de autorizar a criação de empresas privadas no Setor de TI, como uma forma de incentivar a permanência desses profissionais no país.
Cuba é um país laboratório único no mundo, pela quantidade de peculiaridades que possui. Mesmo diante da desaprovação da opinião pública brasileira ao apoio do Governo Federal à construção do porto de Mariel, é necessário acompanhar a evolução de Cuba, lenta, porém decidida, para um país ‘normal’. Sua latinidade empurra para a integração com a América Latina, enquanto seu tamanho lhe impede de ter um papel mais relevante em escala global, como ocorre com a TI.
*Roberto Carlos Mayer (mailto:[email protected]) é diretor da MBI (http://www.mbi.com.br), vice-presidente de Relações Públicas da Assespro Nacional e presidente da ALETI (Federação das Entidades de TI da América Latina, Caribe, Portugal e Espanha).