Em tempos de pandemia, em que o futuro é incerto e os recursos cada vez mais escassos, a capacidade de cooperação poderá ser um diferencial de enfrentamento. Trata-se da diferença entre a reconstrução de um mundo melhor pós-pandemia ou um claro retrocesso. “E cooperar, unir forças para enfrentar desafios são atitudes que podem ser influenciadas por certas armadilhas do pensamento”, afirma o médico psiquiatra Cyro Masci.
Um bom exemplo, segundo o especialista, é uma antiga piada, em que um protestante e um católico veem um padre entrar em um prostíbulo. O protestante sorri com malícia e logo enxerga a ironia na Igreja Católica. Já o católico fica todo orgulhoso ao ver que “seu” padre não diferencia ninguém na hora da morte e é capaz de ir dar os últimos sacramentos até mesmo num prostíbulo.
“Essa anedota ilustra bem o fato de que todos tiram conclusões em harmonia com opiniões e conceitos pessoais preconcebidos. É claro que na maior parte do tempo, muitas pessoas emitem opiniões e julgamentos mesmo sem possuir domínio teórico a respeito”, enfatiza Masci. De acordo com ele, são externadas preferências e aversões baseadas apenas na opinião pessoal, em interesses políticos e econômicos, na história de vida pessoal de cada um. “Todos esses fatores atuam de modo consciente ou inconsciente quando se emite uma opinião ou se toma uma decisão”.
Julgamentos
Cyro Masci lembra ainda que o problema começa a surgir quando a decisão e o julgamento afetam as ações com consequências mais sérias. “Não importa se for um empresário, um cientista ou um político, o fato é que todos estão sujeitos a várias armadilhas”, explica e dá alguns exemplos:
“Há estudos mostrando claramente que, se uma mesma cobertura da imprensa for apresentada a dois grupos rivais, cada um deles tende a acreditar que a reportagem favoreceu mais o seu opositor”, acrescenta. Em outro trabalho, dois grupos de estudantes foram formados, um deles com pessoas a favor da pena de morte e o outro contra a pena capital. Em cada grupo, para metade dos estudantes, foram oferecidos dois trabalhos fictícios, um a favor da pena de morte com argumentação baseada em dados estatísticos bastante falhos, e outro contra a pena de morte com uma metodologia científica bastante superior. A outra metade de cada grupo recebeu exatamente o contrário, um estudo contra a pena de morte com método científico falho e outro estudo com metodologia mais rigorosa e completa.
No final, observou-se que a qualidade do método científico utilizado foi o que menos influenciou nas opiniões dos estudantes. “Cada grupo avaliava os trabalhos científicos segundo suas preconcepções, sem levar em conta a qualidade dos dados científicos”, explica Cyro Masci.
Existem alguns tipos básicos de desvirtuamento na interpretação dos fatos. Segundo o psiquiatra, um deles é a pura e simples fraude, que ocorre de modo consciente e intencional motivada pelas mais diferentes razões pessoais, políticas ou econômicas. “Outro tipo é a ‘advocacia’, o uso de um filtro seletivo para as ideias que estão de acordo com aquilo que cada um se acredita”, explica.
Esse fenômeno, segundo os pesquisadores, pode ocorrer de maneira “fria”, nos momentos em que se defende este ou aquele aspecto da realidade, com a firme intenção de se chegar à verdade de maneira isenta, a qualquer conclusão ou resultado, mas sem perceber que de modo inconsciente estamos selecionando aquilo que está de acordo com nossas crenças. “A outra ‘advocacia’ é chamada de ‘quente’ nos momentos em que desejamos firmemente que um determinado resultado ou conclusão apareçam, e isso contamina nosso julgamento”, explica o médico.
“É importante notar que o processo de decisão envolve análise dos fatos, e que essa análise possui muitas armadilhas. Existem algumas alternativas para contornar essa dificuldade, e uma das mais promissoras é a criação de um ambiente de interdependência no lugar da competição”.
Outro estudo
Um interessante estudo pode ilustrar melhor: dois grupos de crianças foram colocadas propositalmente numa determinada situação que acabou provocando antagonismo, com conflitos e competição que davam origem a agressões frequentes.
“Essa hostilidade diminuiu bastante quando os dois grupos foram colocados em situação em que a cooperação era a única saída, por exemplo ao distribuir a montagem de barracas num acampamento de tal modo que a única possibilidade de sucesso era a união e cooperação das crianças”, lembra o psiquiatra.
Ou então o uso da chamada ‘técnica de armar’, já que é parecida com um quebra-cabeças. Cada criança recebe um pedaço, por exemplo, de um período de vida de um personagem histórico qualquer. Para que seja possível compreender a vida inteira desse personagem, as crianças tiveram que necessariamente interagir e cooperar uma com as outras.
No mundo pós-pandemia, acrescenta Cyro Masci, já é possível antecipar falta de recursos e queda nos índices de desenvolvimento humano. “Transformar o futuro passa, necessariamente, pelo desenvolvimento das capacidades de cooperação”, finaliza
Cyro Masci é médico psiquiatra em São Paulo, atua em clínica privada com abordagem integrativa.
Outras informações: http://bit.ly/2MEsRcP
Website: https://www.masci.com.br/