O Brasil passa de 10 mil mortes pela Covid-19 neste fim de semana, tornando-se o sexto país do mundo neste triste ranking. No entanto as más notícias não param por aí. O País está atrás apenas dos Estados Unidos na contagem diária de mortes e num ritmo crescente, enquanto nos países da Ásia e da Europa a doença começa a dar sinais de recuo. A tragédia da epidemia é um fato que se impõe dia após dia, e vai fazendo com que os círculos negacionistas se tornem cada vez mais raros e desacreditados, embora infelizmente uma parte deles ainda esteja muito perto do poder.
Esta é uma doença nova, identificada com precisão há pouco mais de quatro meses. Naturalmente ainda há mais perguntas do que respostas a respeito de seu comportamento, e qualquer um que dê um prognóstico sobre o que virá com muita precisão está arriscando mais do que seria prudente. O momento atual é de exceção, durante o qual as decisões precisam ser rápidas e firmes, para evitar uma catástrofe ainda maior. Enquanto não houver uma vacina efetiva, que está sendo buscada freneticamente por laboratórios de todo o mundo, só há duas coisas a fazer: prevenir novas contaminações com o isolamento social estrito e medidas de higiene reforçadas, e cuidar da melhor maneira possível de quem adoeceu.
A Covid-19, para uma parte das pessoas contaminadas, tem um efeito muito intenso sobre o sistema respiratório. Como todos sabem, os pacientes mais graves precisam de internação em UTIs com respiradores artificiais. Ou seja, nunca antes foi preciso de tantos leitos especializados de uma só vez. A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) acaba de concluir um levantamento sobre o número total de vagas nas UTIs no Brasil e chegou à conclusão de que, tomados em conjunto, a situação é razoável. Com 45.848 leitos, tem-se a média de 2,2 para cada 10 mil habitantes, dentro do recomendável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 1 a 3. O problema é que eles não são bem distribuídos. Há 22.844 do Sistema Único de Saúde (SUS) e outros 23.004 na rede privada. Isso dá uma média de 1,4 leito para 10 mil usuários do SUS e 4,9 leitos para a rede privada. Embora a proporção do SUS ainda esteja acima do mínimo recomendado pela OMS, durante esta crise aguda ela pode não ser suficiente para atender a população. E não faria o menor sentido manter leitos ociosos na rede privada enquanto há gente precisando de atendimento.
Há ainda um outro problema a ser enfrentado, que é a disparidade regional de leitos. Historicamente há mais possibilidades de atendimento no sudeste e no sul, onde se concentram as atividades econômicas, as faculdades de medicina e enfermagem, os principais centros de excelência em saúde. No entanto, a disseminação do vírus tem sua própria dinâmica, por lógicas que ainda são desconhecidas, se é que de fato há algum padrão a ser desenhado. Na Itália, por exemplo, atingiu o norte mais do que o sul, relativamente mais pobre. No Brasil, até agora têm sofrido mais os estados da região Norte e do Nordeste setentrional. E, nesses casos, as populações não podem ficar dependendo apenas das estruturas locais, que se tornaram insuficientes. O governo federal deveria o quanto antes assumir o protagonismo, criando estruturas centralizadas de atendimento e permitindo o deslocamento aéreo, se for o caso, para dar conta dos tratamentos. As despesas altas não podem ser alegações para não salvar vidas.
Neste momento há uma viva polêmica em Brasília sobre o que fazer para dar conta dessa situação. Por um lado, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) determinou, desde o dia 22 de abril, que se estabeleça uma fila única para os pacientes de Covid-19, somando-se os leitos públicos e privados. Há pelo menos quatro projetos de lei tramitando com pedido de regime de urgência na Câmara dos Deputados que vão na mesma direção, propondo regras ligeiramente diferentes. Por outro lado, há a oposição dos gestores de saúde privada e filantrópica. Um documento assinado pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), pela Confederação das Misericórdias do Brasil, pela Federação Brasileira de Hospitais e pela Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge) pede ao governo que não seja adotada a fila única, mediante quatro medidas: revitalização de leitos públicos fechados, construção de hospitais de campanha, testagem da população e abertura de editais públicos para a contratação de leitos e serviços. Há ainda um desejo manifestado por seus agentes de que o governo defina uma remuneração fixa para o atendimento de pacientes do SUS pelas UTIs privadas no caso da Covid-19, definido em edital, que poderia eventualmente ser próximo ao que é pago para a rede conveniada ao sistema, que hoje está em R$ 1.600 por dia de internação.
São justas reivindicações, que podem ser assimiladas pelo poder público. Mas também é preciso enfatizar a urgência de uma solução. Neste momento de pandemia, todos os recursos que estão disponíveis devem ser disponibilizados. Não é razoável que se espere pela reativação de leitos ou abertura de novos, provisórios, com equipamentos e profissionais especializados que não serão encontrados com facilidade, para só então franquear a internação em unidades já prontas que estejam ociosas. O Brasil investiu nas últimas décadas em um sistema de saúde universal disseminado, que tem suas falhas, que poderia ser melhor gerido e receber mais investimentos, mas que, neste momento oferece respostas que podem ser aproveitadas. Uma delas é exatamente a capacidade de organização de um cadastro único, de uma fila, que já se mostrou eficiente em outros casos de doença, como os transplantes de órgãos. É preciso aproveitar essa possibilidade com competência e determinação, antes que não reste nada a fazer a não ser chorar os mortos.